Quintanares

Criando uma página totalmente dedicada só para ele, o grande mestre Mário Quintana. Meu escritor brasileiro preferido com seu estilo único, vivo e mágico como nenhum outro ser vivo consegue fazer igual.

Vou postar aqui apenas as obras dele que mais gosto pra não ficar muita coisa (e já vai ficar bastante assim).

Todas as obras estão organizadas com título em itálico (quando há) e nome do livro em negrito onde foi publicada a obra originalmente.




Rua dos Cataventos

I
Escrevo diante da janela aberta.
Minha caneta é cor de venezianas:
Verde!... E que leves, lindas filigranas
Desenha o sol na página deserta!

Não sei que paisagista doidivanas
Mistura os tons... acerta... desacerta...
Sempre em busca de nova descoberta,
Vai colorindo as horas quotidianas...

Jogos da luz dançando na folhagem!
Do que eu ia escrever até me esqueço...
Pra que pensar? Também sou da paisagem...

Vago, solúvel no ar, fico sonhando...
E me transmuto... iriso-me... estremeço...
Nos leves dedos que me vão pintando.

II
Dorme, ruazinha... É tudo escuro...
E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?
Dorme o teu sono sossegado e puro,
Com teus lampiões, com teus jardins tranqüilos...

Dorme... Não há ladrões, eu te asseguro...
Nem guardas para acaso persegui-los...
Na noite alta, como sobre um muro,
As estrelinhas cantam como grilos...

O vento está dormindo na calçada,
O vento enovelou-se como um cão...
Dorme, ruazinha... Não há nada...

Só os meus passos... Mas tão leves são
Que até parecem, pela madrugada,
Os da minha futura assombração...

XVIII
Esses inquietos ventos andarilhos
Passam e dizem: “Vamos caminhar.
Nós conhecemos misteriosos trilhos,
Bosques antigos onde é bom cismar...

E há tantas virgens a sonhar idílios!
E tu não vieste, sob a paz lunar,
Beijar os seus entrefechados cílios
E as dolorosas bocas a ofegar...”

Os ventos vêm e batem-me à janela:
“A tua vida, que fizeste dela?”
E chega a morte: “Anda! Vem dormir...

Faz tanto frio... E é tão macia a cama...”
Mas toda a longa noite inda hei de ouvir
A inquieta voz dos ventos que me chama!...



Sapato Florido

Os Vira-Luas
Todos lhes dão, com uma disfarçada ternura, o nome, tão apropriado, de vira-latas. Mas e os vira-luas? Ah! ninguém se lembra desses outros vagabundos noturnos, que vivem farejando a lua, fuçando a lua, insaciavelmente, para aplacar uma outra fome, uma outra miséria, que não é a do corpo...

O Estranho Caso de Mister Wong
            Além do controlado Dr. Jekyll e do desrecalcado Mister Hyde, há também um chinês dentro de nós: Mister Wong. Nem bom, nem mau: gratuito. Entremos, por exemplo, neste teatro. Tomemos este camarote. Pois bem, enquanto o Dr. Jekyll, muito compenetrado, é todo ouvidos, e Mister Hyde arrisca um olho e a alma no decote da senhora vizinha, o nosso Mister Wong, descansadamente, põe-se a contar carecas na platéia...
            Outros exemplos? Procure-os o senhor em si mesmo, agora mesmo. Não perca tempo. Cultive o seu Mister Wong.

Prosódia
            As folhas enchem de ff as vogais do vento.

Exegese
            - Mas que quer dizer esse poema? – perguntou-me alarmada a boa senhora.
            - E que quer dizer uma nuvem? – retruquei triunfante.
            - Uma nuvem? – diz ela. – Uma nuvem umas vezes quer dizer chuva, outras vezes bom tempo...

Do Tempo
            Nunca se deve consultar o relógio perto de um defunto. É uma falta de tato, meu caro senhor... uma crueldade... uma imperdoável delicadeza...

Mentira?
            A mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer.

Passeio
            Oh! não há nada como um pé depois do outro...

Viagem
            O fim do cigarro tem uma tristeza de fim de linha...

Ventura
            Naquela missa de Sexta-Feira da Paixão, notei que o velho Ventura rezava assim: - Tchug tchug tchug tchug amém... Tchug tchug tchug tchug amém... Tchug tchug tchug...
            - Assim não vale, seu Ventura.
            - Ora! Ele sabe tudo que eu quero dizer...

Comentário Ouvido num Bonde
            Que moça culta, a Maria Eduarda: usa ponto e vírgula!

O Misantropo
            Um dia ele sentiu que ia morrer. Mudou-se, então, para o último andar de uma velha casa de cômodos sem ascensores...



Espelho Mágico

XIV. Do Mal e do Bem
Todos têm seu encanto: os santos e os corruptos.
Não há coisa, na vida, inteiramente má.
Tu dizes que a verdade produz frutos...
Já viste as flores que a mentira dá?

XVIII. Dos Pescadores de Almas
Se Deus, tal como Satanás, procura
As almas aliciar... por que deixa ao Pecado
Esse caminho suave, essa fatal doçura
E faz do Bem um fruto amargo e indesejado?

XIX. Dos Milagres
O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
Ou luz ao cego, ou eloqüência ao mudo...
Nem mudar água pura em vinho tinto...
Milagre é acreditarem nisso tudo!

XXIV. Da Infiel Companheira
Como um cego, grita a gente:
“Felicidade onde estás”
Ou vai-nos andando à frente...
Ou ficou lá para trás...

XXV. Da Paz Interior
O sossego interior, se queres atingi-lo,
Não deixes coisa alguma incompleta ou adiada.
Não há nada que dê um sono mais tranqüilo
Que uma vingança bem executada...
   
XXVIII. Do “Homo Sapiens”
                        E eis que, ante a infinita Criação,
O próprio Deus parou, desconcertado e mudo!
Num sorriso, inventou o homo sapiens, então,
                        Para que lhe explicasse aquilo tudo...

XXXVI. Da Falsidade
                        Foi tudo falso, o que ela disse?
Fecha os olhos e crê: a mentira é tão linda!
                        Nem ela sabe que fingir meiguice
É o mais certo sinal de que te ama ainda...

XLI. Da Arte de Ser Bom
Sê bom. Mas ao coração
Prudência e cautela ajunta.
Quem tudo de mel se unta,
Os ursos o lamberão.

XLV. Da Sabedoria dos Livros
Não penses compreender a vida nos autores.
                        Nenhum disto é capaz.
Mas, à medida que vivendo fores,
                        Melhor os compreenderás.

LII. Do que Elas Dizem
O que elas dizem nunca tem sentido?
Que importa? Escuta-as um momento.
Como quem ouve, entre encantado e distraído,
A voz das águas... o rumor do vento...

LXII. Dos Pontos de Vista
A mosca, a debater-se: “Não! Deus não existe!
Somente o Acaso rege a terrena existência.”
A Aranha: “Glória a Ti, divina Providência,
Que à minha humilde teia essa mosca atraíste!”

LXVII. Do Capítulo Primeiro do Gênese
Sesteava Adão. Quando, sem mais aquela,
Se achega Jeová e diz-lhe, malicioso:
“Dorme, que este é o teu último repouso.”
                        E retirou-lhe Eva da costela.

LXX. Da Caridade
Se se pudesse dar, indefinidamente,
Mas sem, do que se deu, nada perder, em suma,
                        Ainda assim, muita gente
                        Nunca daria coisa alguma...

 LXXVI. Da Discrição
Não te abras com teu amigo
Que ele um outro amigo tem.
E o amigo do teu amigo
Possui amigos também...

CX. Da Morte
Um dia... pronto!... me acabo.
Pois seja o que tem de ser.
Morrer que me importa?... O diabo
                        É deixar de viver!



Caderno H

Incorrigível
            O fantasma é um exibicionista póstumo.

O Relógio
            O relógio de parede numa velha fotografia – está parado?

Cartaz para uma Feira de Livros
            Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não lêem.

Dos Extremos
            Os cisnes, de tão elegantes, de tão heráldicos e serenos e decorativos, a gente acaba achando-os chatos como patos...

Nota Macabra
            As árvores podadas parecem mãos de enterrados vivos.

Esvaziamento
            Cidades grandes: dias sem pássaros, noites sem estrelas.

Trecho de Diário
            Sempre fui metafísico. Só penso na morte, em Deus e em como ter uma velhice confortável.

Primitivismo
            Datilografia: escrita por batuque...

Mas Seja lá Como For
            Decifrar palavras cruzadas é uma forma tranqüila de desespero.

A Esfinge
            Na volta da esquina encontrei a Esfinge. Petrifiquei-me. Ela me disse então, olhando-me nos olhos:
            - Devora-me ou decifro-te!

 Fatalidade
            O que mais enfurece o vento são esses poetas inveterados que o fazem rimar com lamento.

Camuflagem
            A esperança é um urubu pintado de verde.

Na Solidão da Noite
            Os velhos espelhos adoram ficar no escuro das salas desertas. Por que todo o seu problema, que até parece humano, é apenas o seguinte: - reflexos? ou reflexões?

Dos Livros
            Há duas espécies de livros: uns que os leitores esgotam, outros que esgotam os leitores.

Das Escolas
            Pertencer a uma escola poética é o mesmo que ser condenado à prisão perpétua.

Da Alma
            Uma alma sem mistério não seria alma... Da mesma forma que um Deus compreensível não seria Deus.

Preguiça
            Certa vez abalancei-me a um trabalho intitulado “Preguiça”. Contava do título e de duas belas colunas em branco, com a minha assinatura no fim. Infelizmente não foi aceito pelo supercilioso coordenador da página literária.
            Já viram desconfiança igual?
            Censurar uma página em branco é o cúmulo da censura.

Tic-Tac
            Mera ilusão auditiva, graças à qual a gente ouve sempre “tic-tac” e nunca “tac-tic”... Depois disso, como acreditar nos relógios? Ou na gente?

O Amigo
            Amigo é a criatura que escuta todas as nossas coisas com aquela cara que parece estar dizendo: - E eu com isso?

Da Infinita Solidão
            Mas só Deus – que é único, que não tem par – poderia dizer o que é a solidão.

Contradições?
            ...mas o que eles não sabem levar em conta é que o poeta é uma criatura essencialmente dramática, isto é, contraditória, isto é, verdadeira.
            E por isso é que o bom de escrever teatro é que se pode dizer, com toda a sinceridade, as coisas mais opostas.
            Sim, um autor que nunca se contradiz deve estar mentindo.

 E Quando se Aproximou a Hora
            E quando se aproximou a hora, o Anjo da Encarnação perguntou-lhe:
            - Que queres ser na face da Terra?
- Um polígono regular estrelado.
- O quê?!
- Um polígono regular estrelado – repetiu imperturbavelmente a alma do nascituro.
“Mais um...” – pensou o Anjo. Mas, como os anjos e os poetas são os únicos que não riem dos loucos, limitou-se a objetar:
- E por que não um poliedro? Vai viver num mundo de três dimensões e bem sabes que um polígono apenas tem duas. Lá só existirias na face do papel... e não propriamente na face da Terra.
- Por isso mesmo.
O Anjo desta vez não compreendeu muito bem e retirou-se, dando de asas.
E foi assim que, quando chegou a hora, veio ao mundo mais um louco.
E um “louco simétrico”!
Chamou-se, entre os homens, Edgar Allan Poe.

Da Incompreensão
            O primeiro sinal da incompreensão é o riso; o segundo, a seriedade.

Os Farsantes
            Desconfio da tristeza de certos poetas. É uma tristeza profissional e tão suspeita como a exuberante alegria das coristas.

O Assunto
            E nunca me perguntes o assunto de um poema; um poema sempre fala de outra coisa.

Amizade
            Quando o silencio a dois não se torna incômodo.

Amor
            Quando o silêncio a dois se torna cômodo.

Fantasma
            Pobre-diabo marginal entre dois mundos. Nunca usa sapatos.

Morte
            Nada de maior; simples passagem de um estado para outro – assim como quem se muda do estado do Rio Grande do Sul para o estado de Santa Catarina...

Frases que Matam
            - Mas como você está bem conservado!

Das Escolas Poéticas
            A minha escola poética? Não freqüento nenhuma.
            Fui sempre um gazeador de todas as escolas. Desde assinzinho... Tão bom!

 Primavera Scapigliata
            Primavera?! A primavera, entre nós, é uma licença poética.

Verão
            Há sempre, afastada das outras, uma nuvenzinha preguiçosa que ficou sesteando no azul.

Outono
            É uma borboleta amarela? Ou uma folha que se desprendeu e não quer tombar?

Ponte
            Esses que se debruçam no parapeito de uma ponte têm vocação suicida. Apenas vocação. São uns suicidas crônicos.

A Coisa
            A gente pensa uma coisa, acaba escrevendo outra e o leitor entende uma terceira coisa... e, enquanto se passa tudo isso, a coisa propriamente dita começa a desconfiar que não foi propriamente dita.

Velhos & Moços
            A presunção - tão desculpável e divertida nos moços - é o mais certo sinal de burrice nos velhos. O verdadeiro fruto da árvore do conhecimento é a simplicidade.

Conto Azul
            Certa vez, tinha eu quinze anos, inventei uma história que principiava assim:
            “A primeira coisa que fazem os defuntos, depois de enterrados, é abrirem novamente os olhos.”
            Mas fiquei tão horrorizado com essa espantosa revelação que não me animei a seguir avante e a história gorou no berço, isto é, no túmulo.

Ressalva
            Poesia não é a gente tentar em vão trepar pelas paredes, como se vê em tanto louco por aí: poesia é trepar mesmo pelas paredes.

O Meio e os Meios
            Não me espantam esses escritores que são, evidentemente, o genuíno produto do meio. Mas os que são um produto contra o meio. Exemplo? Um Edgar Allan Poe. E, entre nós, Machado de Assis.
            Quanto ao velho Machado, direis que o seu temário, a sua vivência, que o seu meio, em suma, nada podia ser mais brasileiro.
            O seu meio, sim; mas os seus meios, não. O próprio estilo dele (delícia minha) decerto que se afigurava, aos frondosos escritores da época, um verdadeiro anti-estilo. Cruzes! Seria ele o Anticristo?
            E fico a imaginar o que teria dito, então, o Coelho Neto para o Graça Aranha:
            - Não há de ser nada, meu velho, não há de ser nada... A nossa salvação é o Rui Barbosa.

 Sortilégio
            Inexplicavelmente, uma lagartixa na parede do banheiro. Deixa-la! Como não poupar aquele bicharoco que, ao nos pressentirmos um ao outro, ali ficou subitamente imóvel, com a elegância decorativa de um broche?

Do Folclore
            O mal dos que estudam as superstições é não acreditarem nelas. Isso os torna tão suspeitos para tratar do assunto como um biologista que não acreditasse em micróbios.

A Imagem e os Espelhos
            Jamais deves buscar a coisa em si, a qual depende tão-somente dos espelhos.
            A coisa em si, nunca: a coisa em ti.
            Um pintor, por exemplo, não pinta uma árvore: ele pinta-se uma árvore.
            E um grande poeta – espécie de rei Midas à sua maneira -, um grande poeta, bem que ele poderia dizer:
            - Tudo o que eu toco se transforma em mim.

Destino Atroz
            Um poeta sofre três vezes: primeiro quando ele os sente, depois quando os escreve e, por último, quando declamam os seus versos.

Imaginação...
            A imaginação é a memória que enlouqueceu.

Poesia & Magia
            A beleza de um verso não está no que diz, mas no poder encantatório das palavras que diz: um verso é uma fórmula mágica.

Do Cômico
            Qual a essência do cômico?
            Um homem de perna de pau nos deixa indiferentes, polidamente indiferentes.
            Mas três homens de perna de pau andando juntos na rua... Não, isso é demais! Por que estás rindo?

A Fase Azul
            Havia um tempo em que o céu mirava-se nos meus olhos e não meus olhos no azul do céu, o que não é nenhuma novidade, porque todo mundo já passou por essa fase: só tem que nem todos se lembram...

A Transposição
            Também me lembro que, quando eu era gurizote e briguei mais uma vez para sempre com a Gabriela, deixei-a ali na praça (era domingo, depois da missa) e fui passar pela sua casa, pela sua calçada, pela sua rua...

Epígrafe para uma Antologia Lírica
            Amor, quantos crimes se cometem em teu nome!

Semântica
            Dizeis que tudo é amor e eu vos direi que a fome é tudo; tanto assim que o verbo comer, na insondável sabedoria do povo, também significa possuir carnalmente.
Intrusão
            O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente...

Contrição
            Bem que eu desejaria entender tanto de poesia como certos críticos, mas aí, então, não conseguiria fazer um único verso...

Reticências
            As reticências são os três primeiros passos do pensamento que continua por conta própria o seu caminho...

Sala de Espera
            A sensação póstuma com que folheamos essas revistas atrasadas na sala de espera dos consultórios médicos...

Época
            Subnutrido de beleza, meu cachorro-poema vai farejando poesia em tudo, pois nunca se sabe quanto tesouro andará desperdiçado por aí... Quanto filhotinho de estrela jogado no lixo!

Dolorosa Interrogação
            Por que será que a gente vive chorando os amigos mortos e não agüenta os que continuam vivos?

Família Desencontrada
            O verão é um senhor gordo sentado na varanda e reclamando cerveja. O inverno é o vovozinho tiritante. O outono, um tio solteirão. A primavera, em compensação, é uma menina pulando na corda.

Ameaça
            As dentaduras expostas nas mostras de artigos protéticos parecem dentaduras de antropófagos.

            Uma das coisas que não consigo absolutamente compreender são os que se convertem a outras religiões.
            Para que mudar de dúvidas?

Sinônimos
            Confesso que até hoje só conheci dois sinônimos perfeitos: “nunca” e “sempre”.

?
            Essa pancada que bate isolada em plena insônia e que interrogativamente alonga a sua sílaba única – ahn – é como se o próprio relógio, no escuro, estivesse indagando que horas são...

A Face e o Espelho
            Assim deveria ser a relação de autor para leitor: uma face nua num espelho límpido. Mas é tão difícil... Ou a face está mascarada ou o espelho embaciado.

Canibalismo
            Maneira exagerada de apreciar o seu semelhante.

Meditação
            Vício solitário.

Otimismo
            Filosofia forçada.

Tempo
            Coisa que acaba de deixar a querida leitora um pouco mais velha ao chegar ao fim desta linha.

Como vai a Poesia?
            Naqueles longes tempos, era ele vítima de um cirurgião-dentista que, de repente, do outro lado da sala do café, da outra extremidade do bonde, da calçada oposta, lançava intempestivamente o seu vozeirão:
            - Como vai a poesia?
            Todas as cabeças que se achavam de permeio voltavam-se então para o Poeta. O Poeta, nu, desmascarado, em meio à multidão! Para evitar esses atentados ao pudor, ele afinal descobriu um meio: fazer a pergunta antes que o outro o fizesse. Mal avistava o dentista, e antes que o mesmo ergue-se as trombetas da sua voz, que não lhe soavam propriamente como as trombetas da Fama, mas como as cornetas fanhas da Difamação, bradava alvissareiro o Poeta:
            - Como vai o maçarico?!
            As cabeças de permeio voltavam-se então escandalizadas ou irônicas para o Cirurgião-Dentista. Não porque fosse uma vergonha utilizar esse útil instrumento, mas porque maçarico era mesmo uma palavra muito engraçada, uma palavra que rimava com a dança do sarapico-pico-pico e com surubico. O resultado de tudo isso foi que os papéis se inverteram e o dentista pegou medo do poeta.

Da Modéstia
            A modéstia é a vaidade escondida atrás da porta.

Biografia
            Era um grande nome – ora que dúvida! Uma verdadeira glória. Um dia adoeceu, morreu, virou rua... E continuaram a pisar em cima dele.

Preferências
            Prefiro ser alvo de um atentado a ser alvo de uma homenagem: um atentado é mais expedito e não tem discurso.

Confusão
            Essas duas tresloucadas, a Saudade e a Esperança, vivem ambas na casa do Presente, quando deviam estar, é lógico, uma na casa do Passado e outra na casa do Futuro. Quanto ao Presente – ah! -, esse nunca está em casa.

 Dos Tipos Humanos
            Os extrovertidos são julgados normais. Quanto aos introvertidos, chegam a submetê-los a tratamento. Mas para curá-los de que? De não poderem ser chatos, como os outros?

Da Crítica
            Uma definição apenas define os definidores.

Da Indiferença
            A indiferença é a mais refinada forma da polidez.

Da Saudade
            A saudade que dói mais fundo – e irremediavelmente – é a saudade que temos de nós.

Para Uma História da Filosofia
            A maior conquista do pensamento ocidental foi o emprego das reticências...

Achados & Perdidos
            A memória é um sótão atravancado de objetos inúteis, onde tanto desejaríamos encontrar aquelas coisas perdidas que – de tão perdidas – já nem sabemos mais o que sejam...

Pausa
            Oh! todo o sossego e lucidez das madrugadas, quando o último grilo já parou seu canto e ainda não se ouviu o canto do primeiro pássaro...

Da Alma
            A alma é essa coisa que nos pergunta se a alma existe.

Verão
            No verão dá cupim na cabeça de muita gente. Cupim ou caruncho? Será a mesma coisa? Não sei. Nem vou saber agora. Verão é isso mesmo: preguiça de procurar palavras no dicionário.

Vida
            Só a poesia possui as coisas vivas. O resto é necropsia.

Cá entre Nós
            Os clássicos escreviam tão bem porque não tinham os clássicos para atrapalhar.

Ortografia
            Costumava-se distinguir entre creação e criação. Exemplo: a creação de um poema, a criação de galinhas. Era limpo e nítido. Nada de confusões. Mas agora que tudo é um, como diziam os clássicos, ficou irremediavelmente perdido o que escrevi, um dia:
            “Deus creou o mundo e o diabo criou o mundo.”
            E agora? Para explicar tudo isso em mais palavras – o que seria um verdadeiro crime – imaginem os circunlóquios que eu teria de fazer... Não faço!

FC
            Um dos motivos que me fazem acreditar em nossa origem extraterrestre é que o homem é o único animal que aprecia olhar os incêndios.

Uni-Verso
            “Treme a folha no galho mais alto” – escrevo. Paro e sorvo, de olhos fechados, o cheiro bom da terra, do capim chovido... Parece que quer vir um poema... Abro os olhos e fico olhando, interrogativamente, a linha que escrevi no alto da página. Depois de longo instante, acrescento-lhe três pontinhos. Assim não ficará tão só enquanto aguarda as companheiras. O vento fareja-me a face como um cachorro. Eu farejo o poema. Ah, todo mundo sabe que a poesia está em toda parte, mas agora cabe toda ela na folha que treme.
            Por que não caberia então em único verso? Um uni-verso.
            Treme a folha no galho mais alto.
            (O resto é paisagem...)

Geometria
            A curva é o caminho mais agradável entre dois pontos.

E Daí?
            Falam muito no Sono Eterno. Sempre falaram, aliás... E daí?
            Daí, só uma coisa me impressiona, e muito: a ameaça de uma Insônia Eterna.

Pausa
            Às vezes, nos dias calmos, apenas se nota uma leve ondulação na relva: são os cavalos do vento que estão pastando.

Imagem
            O gato é preguiçoso como uma segunda feira.

Da Arte de Recordar
            O que têm de bom as nossas mais caras recordações é que elas geralmente são falsas.

Ainda e Sempre
            Digam o que disserem, mas a Lua continua sendo o LSD dos poetas.

O Doce Convívio
            Teus silêncios são pausas musicais.

Caso Clínico
            O Destino é o acaso atacado de mania de grandeza.

Acidente de Tráfego
            Nós vivemos a temer o futuro; mas é o passado quem nos atropela e mata.

Evolução
            O que me impressiona, à vista de um macaco, não é que ele tenha sido nosso passado: é este pressentimento de que ele venha a ser o nosso futuro.

Luz Própria
            Os sonhos têm luz própria, uma luz que não vêm de nenhum sol, de nenhuma lua, de nenhum foco. Está em toda parte. Na próxima vez que sonhares, procura ver se o teu vulto projeta alguma sombra. E se a tua imagem se reflete nalgum espelho. Tolice minha! Nos salões do sonho nunca há espelhos...

Tão Fácil
            Nada tão fácil como assassinar hoje em dia uma mulher. Pode ela gritar que nem uma heroína de telenovela. Os vizinhos pensarão que é isso mesmo.

Da Arte de Fazer Visitas
            Sempre que o convidavam a uma casa, perguntava-lhes se podia ir com uma pessoa. Combinado! Deixava então os outros conversarem à vontade, enquanto ele fingia que estava escutando.

Aproximações
            Clair de lune, chiaro de luna, claro de luna... jamais os franceses, os italianos e os espanhóis saberão mesmo o que seja o luar, que nós bebemos de um trago numa palavra só.

Que Será de Mim?
            Com essa leitura dinâmica, decerto nem chegarão a me enxergar... Que sobrará de mim – eu que só escrevo para os que gostam de ler nas entrelinhas? Que escrevo, como bem sabem meus fregueses, apenas para os gulosos, e jamais para os glutões.

Impressionador Assunto para um Desenho-Poema
            ...um anjo depenado...

O Tempo e a Vida
            Não se deviam permitir nos relógios de parede esses ponteiros que marcam os segundos: eles nos envelhecem muito mais que o ponteiro das horas.

Cartaz para Turistas
            Viajar é mudar o cenário da solidão.

E por falar em Compensação
            Não sabias? As nossas mortes são noticiadas como nascimento pela imprensa do Outro Mundo.

Da Difícil Facilidade
            É preciso escrever um poema várias vezes para que dê a impressão de que foi escrito pela primeira vez.

Urbanística
            Como seriam belas as estátuas eqüestres se contassem apenas dos cavalos!

Sangue e Areia
            O mais revoltante nas touradas é que os touros não são aplaudidos quando saem vencedores.

Serviço a Domicílio
            Não devia caber a um poeta o extrovertido e saltitante encargo de Redações-Públicas. E sim de Relações-Íntimas. Isto é, comunicação... a sós.

Intermediários
            Não me ajeito com os padres, os críticos e os canudinhos de refresco... Não há nada que substitua o sabor da comunicação direta.

Poema
            O poema
            essa estranha máscara
            mais verdadeira do que a própria face...

Causa Mortis
            Os poetas morrem de parto.

Legítima Apropriação
            Copio e assino esta frase encontrada no velho Schopenhauer: “A soma de barulho que uma pessoa pode suportar está na razão inversa de sua capacidade mental.”

Dupla Delícia
            O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.

Assunto para Um Conto
            Um santo homem que, na sua humildade, se fez pecador, porque achava que não merecia o Céu.

Mudança
            O mais difícil na morte é acomodar-se a gente aos novos hábitos.

Das Viagens
            Conhecer o mundo não adianta nada: as viagens apenas complicam a ignorância.

Do Sonho
            Sonhar é acordar-se para dentro.

Do Caderno de um Peripatético
            Se eu fosse acreditar mesmo em tudo o que eu penso, ficaria louco.

            O melhor é pensar apenas imagens: uma sala sem ninguém, por exemplo, com gaiolas de passarinhos vazias...

            Melhor sair para a rua... Ou entrar para a rua? Mas se a rua não fosse uma espécie sui generis de lar, por que se diz então “a porta da rua” e não “a porta da casa”?

            Adoro esses manequins de todas as cores. Aliás, são um plágio: muito antes de os fabricarem, eu já havia sonhado a maravilha de ver mulheres verdes, cor de laranja, azuis (como devem ser chatas as de tonalidade azul-celeste!), mulheres cor de vinho, de uva, de estrela... Toda essa variedade, meu pobre leitor, havia de acabar com a monotonia de teres de escolher apenas entre uma mulher branca, uma amarela e a Rainha de Sabá.

            E a bugra? Já estou ouvindo reclamações do escrivão Pero Vaz e do José de Alencar. Paciência! A bugrinha vai aqui em separado porque não cabia no ritmo da frase anterior.

            O ritmo é mais persuasivo do que qualquer idéia. Se assim não fosse, para que serviriam os poetas?

O Disfarce
            Cansado da sua beleza angélica, o Anjo vivia ensaiando caretas diante do espelho. Até que conseguiu a obra-prima do horror. Veio, assim, dar uma volta pela Terra. E Lili, a primeira meninazinha que o avistou, põe-se a gritar da porta para dentro de casa: “Mamãe! Mamãe! Vem ver como o Frankenstein está bonito hoje!”.

Bebida
            Quem bebe por desgosto e um cretino: só se deve beber por gosto.

Mistério
            Por que será que “com certeza” tem sentido de “talvez”? E por que chamam de duvidosas as mulheres de que todo mundo tem certeza?

A Esperança
            Não, o provérbio não está bem certo. O raio é que enquanto há esperança, há vida. Jamais foi encontrado no bolso de um suicida um bilhete de loteria que estivesse para correr no dia seguinte...

A Triste Beleza
            Esse verso de pé-quebrado que atravessa a página de um lado a outro, como um pobre cachorro estropiado...

Vidinha
            O mais triste de um passarinho engaiolado é que ele se sente bem...

Ainda e Sempre
            O maior desmemoriado que existe é o crente. Ele jamais se cansa de ouvir a mesma história. E sempre esquece os mesmos mandamentos.

A Arte de Ler
            O leitor que mais admiro é aquele que não chegou até a presente linha. Neste momento já interrompeu a leitura e está continuando a viagem por conta própria.

Geografia
            O mais sugestivo é que esses países afro-asiáticos sempre nos parecem afrodisíacos.

Exame de Inconsciência
            Há noites em que não posso dormir de remorso por tudo que deixei de cometer...

Frase para Álbum
            Há gente que tem raiva dos clássicos, por terem sido obrigados a conhece-los. Eu tenho pena deles, porque não nos conhecem.

Outra Frase para Álbum
            Eva era mulher para principiantes?

Verso Avulso
            Eu não sou eu, sou o momento: passo.

Surpresa
            O mais desconcertante da morte é quanto a gente descobre que alma não tem sexo.

Diplomacia
            Ter a idade da pessoa com quem se fala.

Herói
            Camarada impulsivo que morre cedo.

Do Bem e do Mal
            No fundo, não há bons nem maus. Há apenas aqueles que sentem prazer em fazer o bem e os que sentem prazer em fazer o mal. Tudo é volúpia...

A Chuva
            O bom da chuva é que parece que não tem fim...
            Nenhuma das outras coisas me dá essa resignada, tranqüilizadora sensação de fatalidade.

Nada Sobrou
            As pessoas sem imaginação podem ter tido as mais imprevistas aventuras, podem ter visitado as terras mais estranhas... Nada lhes ficou. Nada lhes sobrou. Uma vida não basta apenas ser vivida: também precisa ser sonhada.

Monólogo
            Diálogo feminino.

Vira-Lata
            O último boêmio.

Preces
            Rezar é uma falta de fé: Nosso Senhor bem sabe o que está fazendo...

Fatos Consumados
            ... e se eles te apertarem muito sobre o que quiseste dizer com um poema, pergunta-lhes apenas o que Deus quis dizer com este nosso mundo...

Desigualdade
            A morte não iguala ninguém: há caveiras que possuem todos os dentes.

Cuidado
            A poesia não se entrega a quem a define.

O Princípio
            Se antes era o Nada, como poderia haver Alguém para tirar dele o mundo?

O Tempo
            O tempo é a insônia da eternidade.

Estranho Labor
            O que prejudica a minha preguiça prejudica o meu trabalho.



Apontamentos de História Sobrenatural

Instrumento
Impossível fazer um poema
neste momento.
Não, minha filha, eu não sou a música
- sou o instrumento.
Sou, talvez, dessas máscaras ocas
num arruinado monumento:
empresto palavras loucas
à voz dispersa do vento...

O Tempo
O despertador é um objeto abjeto.
Nele mora o Tempo. O Tempo não pode viver sem nós, para não parar.
E todas as manhãs nos chama freneticamente como
um velho paralítico a tocar a campainha atroz.
Nós
é que vamos empurrando, dia a dia, sua cadeira de rodas.
Nós, os seus escravos.
Só os poetas
os amantes
os bêbados
podem fugir
por instantes
ao Velho... Mas que raiva impotente dá no Velho
quando encontra crianças a brincar de roda
e não há outro jeito senão desviar delas a sua cadeira de rodas!
Porque elas, simplesmente, o ignoram...

Uma Canção
Minha terra não tem palmeiras...
E em vez de um mero sabiá,
Cantam aves invisíveis
Nas palmeiras que não há.

Minha terra tem relógios,
Cada qual com a sua hora
Nos mais diversos instantes...
Mas onde o instante de agora?

Mas onde a palavra “onde”?
Terra ingrata, ingrato filho,
Sob os céus da minha terra
Eu canto a Canção do Exílio!

Aquarela de Após-Chuva
No peitoril de todas as janelas
Há uma flor convalescente...
No céu desenha-se um pálido sorriso...
Só o teu nome, que estava quase desmaiado no meu peito,
Aviva-se em brasa como uma cicatriz!

Tristeza de Escrever
Cada palavra é uma borboleta morta espetada na página:
Por isso a palavra escrita é sempre triste...

Canção para Depois
À maneira de Cecília
Quando esta pura voz que ouviste
Serenamente calar-se,
Como é que descobririas
                        O seu disfarce?

Não digas palavras loucas
Em meus ouvidos de pedra!
Não busques na voz do vento
                        Minha resposta...

Silêncio! E, depois, afasta
O passo que se avizinha...
Que ninguém veja esta face
                        Que não é minha!

Biografia
Entre o olhar suspeitoso da tia
E o olhar confiante do cão
O menino inventava a poesia...



 A Vaca e o Hipogrifo

As Covas
O bicho,
quando quer fugir dos outros,
faz um buraco na terra.

O homem,
para fugir de si,
fez um buraco no céu.

Intenções
Os que andam com segundas intenções não conseguem enganar ninguém. Está na cara... O perigo mesmo – porque é invisível – está nos que têm terceiras intenções.

Compensação
            E quando o trem passa por esses ranchinhos à beira estrada, a gente pensa que é ali que mora a felicidade...

Do Estilo
            Se alguém acha que está escrevendo muito bem, desconfia...
            O crime perfeito não deixa vestígios.

Intérpretes
            Mas, afinal, para que interpretar um poema? Um poema já é uma interpretação.

Parêntesis
(Em meio ao turbilhão do mundo
O poeta reza sem fé)

Verbetes
            Infância – A vida em tecnicolor.
Velhice – A vida em preto-e-branco.

Poema
            Oh! aquele menininho que dizia
            “Fessora, eu posso ir lá fora?”
mas apenas ficava um momento
bebendo o vento azul...
Agora não preciso pedir licença a ninguém.
Mesmo porque não existe paisagem lá fora:
somente cimento.
O vento não mais me fareja a face como um cão amigo...
Mas o azul irreversível persiste em meus olhos.

O Estranho Fichário
            O cérebro humano arquiva tudo. Mas tudo mesmo! – insistem os sábios. O único transtorno em toda essa maravilha é que a gente vive perdendo as chaves do maldito arquivo...

Clarividência
            O poema é uma bola de cristal. Se apenas enxergares nele o teu nariz, não culpes o mágico.

Um Pé Depois do Outro
            Há gente que gosta de escalar o Everest – uma paranóia como outra qualquer. Mas sou insuspeito para mandar contra, em visto da modéstia de minha própria mania. A qual consiste em descobrir ruazinhas desconhecidas. Como se vê, uma mania bastante chã. Sérgio de Gouvêa e eu éramos peritos nisso. Descíamos num fim de linha e, quando nos sorria a perspectiva, enveredávamos por qualquer rua transversal. Nunca nos importou o nome da rua, porque estávamos fazendo descobrimentos e não turismo e, além disso, não constava de nossas intenções colonizar aquelas terras incógnitas, nem mais lá voltar. Éramos uns Colombos completamente desinteressados. Naquele tempo as pessoas costumavam reparar umas nas outras e os aborígines nos fitavam com um olhar de quem indaga: “Quem serão esses?” Bem, saciados os olhos nas paisagens suburbanas, sucedia-nos às vezes também descobrir um bar, geralmente de esquina, onde saciávamos a sede, Só não saciávamos os assuntos, sobremaneira metafísicos – o que deve deixar espantados os pragmáticos de hoje.

            Depois, vínhamos andando de volta pelo trajeto do bonde, até cansarmos, quando então tomávamos o dito e às vezes nos sucedia caminhar até o centro, nos dias de melhor forma. Por essas andanças domingueiras, nós nos julgávamos peripatéticos. Qual nada! Éramos apenas precursores do Método do Cooper. Só tem que em câmera lenta.

O Encontro
            Subitamente
            na esquina do poema, duas rimas
            olham-se, atônitas, comovidas,
            como duas irmãs desconhecidas...

O Vento e a Canção
Para Tânia Franco Carvalhal
Só o vento é que sabe versejar:
Tem um verso a fluir que é como um rio de ar.

E onde a qualquer momento podes embarcar:
O que ele está cantando é sempre o teu cantar.

Seu grito é o grito que querias dar,
É ele a dança que ias tu dançar.

E, se acaso quisesses te matar,
Te ensinava cantigas de esquecer
Te ensinava cantigas de embalar...
E só um segredo ele vem te dizer:

- é que o vôo do poema não pode parar.



Da Preguiça Como Método de Trabalho

            Não sei pensar a máquina, isto é, faço o meu trabalho criativo primeiramente a lápis. Depois, com o queixo apoiado na mão esquerda, repasso tudo a máquina com um dedo só.
            - Mas isto não custa muito?
            - Custar, custa, mas dura mais...

            Não despertemos o leitor. Os leitores são, por natureza, dorminhocos. Gostam de ler dormindo.
            Autor que os queira conservar não deve ministrar-lhes o mínimo susto. Apenas as eternas frases feitas.
            “A vida é um fardo” – isto, por exemplo, pode-se repetir sempre. E acrescentar impunemente: “disse Bias.” Bias não faz mal a ninguém, como aliás os outros seis sábios da Grécia, pois todos os sete, como há vinte séculos já se queixava Plutarco, eram uns verdadeiros chatos. Isto para ele, Plutarco. Mas, para o grego comum da época, devia ser a delícia e a tábua de salvação das conversas.
            Pois não é mesmo tão bom falar e escrever sem esforço? O lugar-comum é a base da sociedade, a sua política, a sua filosofia, a segurança das instituições. Ninguém é levado a sério com idéias originais.
            Já não é a primeira vez, por exemplo, que um figurão qualquer declara em entrevista: “O Brasil não fugirá ao seu destino histórico!” O êxito da tirada, a julgar pelo destaque que lhe dá a imprensa, é sempre infalível, embora o leitor semidesperto possa desconfiar que isso não quer dizer coisa alguma, pois nada foge mesmo ao seu destino histórico, seja um Império que desaba ou uma barata esmagada.

            A preguiça é a mãe do progresso. Se o homem não tivesse preguiça de caminhar, não teria inventado a roda. Não poderia viajar pelo mundo inteiro.

            Conta-se que em fins do século passado, num remoto país do Oriente, a viagem da capital à fronteira levava nada menos que trinta dias, e ainda por cima a lomnbo de camelo. E sucedeu que um engenheiro britânico ali residente, em nome do progresso, resolveu remediar a coisa.
            - Enfim – concluiu ele, após uma audiência com o respectivo chá, ou coisa que o valha -, construindo-se a estrada de ferro de que o país tanto necessita, a viagem até a fronteira poderá ser feita em um só dia!
            - Mas – objetou o velho monarca, que o ouvira com uma paciência verdadeiramente oriental – o que é que a gente vai fazer dos vinte e nove dias que sobram?!

            ...E o mais confortador das longas viagens de trem são esses burricos pensativos que vemos à beira da estrada e nos poupam assim o trabalho de pensar...
            Certa vez abalancei-me a um trabalho intitulado “Preguiça”. Constava do título e de duas belas colunas em branco, com a minha assinatura no fim. Infelizmente não foi aceito pelo supercilioso coordenador da página literária.
            Já viram desconfiança igual?
            Censurar uma página em branco é o cúmulo da censura.

            Em suma: o que prejudica a minha preguiça prejudica o meu trabalho.

            Compensação:
                                   Suave preguiça que, do mal-querer
                                   E de tolices mil, ao abrigo nos pões...
                                   Por tua causa, quantas más ações
                                   Deixei de cometer!

Inscrição para Um Portão de Cemitério
            A morte não melhora ninguém...

Desconfiança
            Mas quem sabe se o Diabo não será o Mister Hyde de Deus?

O Velho
            O que eu mais temo – escrevi em um dos meus agás – não é o Sono Eterno, mas a possibilidade de uma insônia eterna – o que seria uma verdadeira estopada, um suplico sem fim. Porém, em uma das minhas costumeiras noites de sonho acordado, o meu amigo morto me pediu um cigarro, disse-me:
            - Não é como tu pensas, todos nós trabalhamos numa série infinita de escritórios (cada geração de mortos num deles) onde a gente se entrega a um sério trabalho de estatística: tem-se de anotar a chegada de cada um e comunicar-lhe o respectivo número, pois isso de nomes é mera convenção terrena. O pior são os que atrapalham a escrita, morrendo antes do tempo – ou porque se mataram ou por culpa dos médicos, e estes ainda são culpados quando fazem os doentes morrer depois da hora, numa espécie de sobrevida artificial, já que os médicos (diga-se em sua honra) julgam criminosa a prática da eutanásia... Uma pena!
            - E fora do expediente, o que fazem vocês?
            - Bem, a hora do almoço não deixa de ser divertida por causa dos Santos: põem-se a discutir acaloradamente qual deles fez na Terra o maior número de milagres e outras futilidades.
            - E nos serões, eles jogam prenda?
            - Mais respeito, seu vivo!... Bem! Nos serões eles fazem concursos para ver quem é que diz de cor mais versículos da Bíblia. Uma bobagem! Todo mundo sabe que o único que sabe a Bíblia de cor, tintim por tintim, é o Diabo.
            - E Deus? Me conta como é Ele...
            - Ah, o Velho? Desconfio que certa vez O vi...
            - Só certa vez? Mas Ele não está sempre no Céu?
            - Bem, tu deves compreender que ele se preocupa principalmente com os vivos. O Velho está quase sempre é na Terra, lidando com os assuntos humanos. Ele e o Diabo. Sim, os dois vivem a maior parte do tempo na Terra.
            - Ora, eu pensava que vocês soubessem mais do que nós... Mas conta-me lá como foi que desconfiaste de ter visto o Velho?
            - Foi há tempos, eu era recém-chegado, quando uma tarde apareceu de surpresa no escritório um velhinho muito simpático. Com as mãos às costas, curvava-se sobre cada mesa, inspecionando o nosso trabalho, por sinal que me atrapalhei, errei uma palavra. Ele bateu-me confortadoramente no ombro, como quem diz: “Não foi nada... não foi nada...” Ao retirar-se, já com a mão no trinco da porta, virou-se para nós e abanou: “Até outra vez se Eu quiser!”

Diálogo
            Dois monólogos intercalados.

Covardia
            É uma covardia falar mal dos inimigos: só se deve falar mal dos amigos.

A Saudade
            O que faz as coisas pararem no tempo é a saudade.

Da Amável Indiferença
            Amabilidade é quando a gente convive toda a existência com alguém e jamais lhe dá a entender que ele perdeu há anos uma perna ou perdeu um dia a cabeça.

Da Solidão
            O problema da solidão não consiste em saber como solucioná-la, mas em saber como conservá-la.

Visitas
            Não é só quando estou trabalhando que as visitas importunam: é quando não estou fazendo nada.

Eternidade
            A eternidade é um relógio sem ponteiros.

Explicação Parcial
            Pois ainda no outro dia escrevi que já tinha passado da idade de ler coisas sérias. Vocês vão achar engraçadíssimo, mas aos quinze anos devorei literalmente Dostoievski e roí com avidez canina não sei quantas ossadas metafísicas, Éramos assim os da minha geração. A gente queria apenas decifrar o mistério da alma, o sentido da vida, a finalidade do mundo.
            No fim, só me restou a poesia, outro enigma...

Intruso
            Indivíduo que chega exatamente na hora em que não devia. Exemplo: o marido...

Melancolia
            Maneira romântica de ficar triste.

Por que Será?
            Por que será que eles sempre antepõem a uma afirmativa animadora uma exclamação de espanto (mas como você está bem disposto! etc.)?
            Como se fosse de minha obrigação andar sempre tuberculoso ou em estado de coma!

Os Ponteiros
            Cruel invenção a desses relógios de três ponteiros, um dos quais faz rapidamente a volta do mostrador em sessenta segundos... Por que, pergunto, por que tornar visível a passagem do tempo?

Verso Avulso
...O luar é a luz do sol que está dormindo...

As Ilusões Perdidas
            Fumar é um jeito discreto de ir queimado as ilusões perdidas. Daí, esse ar entre aliviado e triste dos fumantes solitários. Vocês já não repararam que nenhum deles fuma sorrindo?

Diálogo Noite Adentro
            - Mas há as que nos compreendem...
            - Ah, essas são as piores!

Diálogo Bobo
            - Abandonou-te?
            - Pior ainda: esqueceu-me...

Valor Estimativo
            O meu velho amigo Julião, homem de muitos guardados e segredos, tira do bolso a cigarreira. Espanto-me: de um verde pálido e tauxiada de ouro, era simplesmente horrenda. Ele surpreende a minha expressão. Gagueja:
            - É... é de um valor estimativo.
            - De algum querido tio-avô defunto? – arrisco.
            - Não... não... é que quando a vi na vitrine, tão feinha, tive pena e... Bem: aqui está ela!

E por Falar Nisso
            Depois do caso anterior, que pertence à realidade imaginária, lembrei-me de outro pertencente à realidade propriamente dita, ocorrido neste mundo onde estás lendo este livro. Acontece que escrevi um soneto que assim principiava: “Como essas coisas que não valem nada e parecem guardadas sem motivo (alguma folha seca, uma taça quebrada...), eu só tenho um valor estimativo.” Pura afetação de modéstia, dirias... Mas tive a imodéstia de o mostrar um dia a Cecília Meireles. Ora, minha amiga implicava com os “como” em poesia; dizia ela que a comparação dividia um verso em duas partes, ficando a realidade à esquerda e a sua aura poética à direita, quando ambos deviam estar fundidas. Pois bem, o meu soneto ainda tinha o agravante de ostentar o “como” logo no princípio. De modo que Cecília sorriu e comentou:
            - Mario, aonde é que você vai parar com esse regime alimentício, comendo folhas secas, taças quebradas, coisas assim...?
            Resultado: jamais publiquei o tal soneto, que aliás não era lá essas coisas e deve estar dormindo um merecido sono nos arquivos do Correio do Povo.

A Harmonia das Formas
            Antes, elas eram violões. Hoje viraram violinos. Naturalmente, continuam raríssimos os Stradivarius...

Perguntas
            Não têm sentido essas perguntas que mandam fazer nas pesquisas: qual o maior poeta, por exemplo. Cada poeta é o maior. Porque não há grandes nem pequenos poetas. Há apenas os que são e os que pensam que são. Estes não contam; quanto aos verdadeiros, cada qual é o grande, aliás, o único poeta do país de si mesmo.
            O Augusto Meyer, que no outro dia estive relendo, e sabe Deus com que saudades, é o grande poeta da Meyerlândia – claro país onde os caminhos (bisbilhos d’água, cicios, verde avança do barranco) levam simplesmente à alegria de andar.
            Não esquecer que nessas estranhas geografias há países pobres, desertos até... Por vezes se trata de um mero fundo de quintal, cheio de cascalho, carrapicho, latas velhas, garrafas quebradas e outras miudezas, com um poeta no meio sozinho, ciscando...

O Bugre e Nós
Lia-se nos tratados de psicologia que o selvagem é incapaz de pensamento abstrato: tem noção do que sejam oito homens, oito árvores, oito flechas, mas falta-lhe a noção abstrata do número oito...
Ora! nós também não temos noção abstrata do número oito. Quando pensamos “oito”, estamos “vendo”, muito concretamente, a forma do algarismo “8”. Onde é que está a abstração? Somos bugres, querido leitor, continuamos bugres, não evoluímos coisa nenhuma... O que fizemos, nessa decantada prova dos oito, foi apenas uma cômoda transposição de imagens.
E os matemáticos, esses principalmente, não sofrem em absoluto dessa angústia do infinito que às vezes se apodera de qualquer um de nós quando olhamos, por exemplo, para o céu estrelado, a pensar os mesmos lugares-comuns que vínhamos casualmente pensando há tantos milênios... Os matemáticos estão libertos de tais perplexidades, porque, para eles, o infinito não passa de um oito deitado.

O Menino e o Infinito
            Quanto a mim, a coisa que primeiro despertou a noção e a angústia do infinito foi um potezinho de pomada Cymbeline. Tinha eu uns quatro para cinco anos, e o que me intrigava no pode de Cymbeline era que a moça do rótulo segurava entre os dedos um pote de Cymbeline, em cujo rótulo outra moça segurava outro pote, que... que... que... Neste ponto meu pobre espírito gaguejava de assombro e terror – pois aquilo era uma coisa perfeitamente lógica e absolutamente inconcebível.
            Depois dessas crises metafísicas provocadas pela noção do infinitamente pequeno, confesso que nunca cheguei a me impressionar muito com os arroubos de meus professores de cosmografia, a propósito das fabulosas distâncias estelares.
            Como me acostumara a olhar o infinito de alto a baixo, por assim dizer, achava tolo abrir a boca diante dessas distâncias astronômicas, em verdade “fabulosas” no sentido etimológico do termo. As distâncias não são grandes: nós é que somos pequenos... Que culpa têm disso os espaços siderais? Por isso a astronomia me pareceu uma ciência para basbaques. E isso de infinitamente grande e infinitamente pequeno é tudo a mesma coisa: o homem é que se meteu no meio, para atrapalhar. E o bacteriologista é um astrônomo às avessas: espia pelo outro lado do canudo...

Traditori
            E como são complicados esses que se empenham em traduzir (!) seus pensamentos... Pois a palavra já não é o próprio pensamento? Acaso algum de vocês já experimentou pensar em palavras?

Dando as Cartas
            Quando Reis, Valetes e Damas se acham emprenhados numa partida, o seu maior temor é que lhes surja pela frente esse invencível representante da plebe: o Coringa.



Porta Giratória

Verso Avulso
            A vida não dá tempo para a Vida.

?
            Que artista teria inventado o ponto e interrogação? Ele já tem a forma de uma orelha que escuta...

Pergunta Inocente
            Mas se as bruxas tem tantos poderes – por que serão tão velhas, tão feias, tão pobres, tão sujas?

A Diferença
            A diferença entre um poeta e um louco é que o poeta sabe que é louco... Porque a poesia é uma loucura lúcida.

Manifestações do Amor
            Uma das mais deliciosas manifestações do amor é a falta de respeito.

Sugestão para um Anúncio de TV
            Nero, durante o incêndio de Roma, saboreando lenta e gulosamente uma caixa de bombons ROSICLER.

Verso Avulso
            Teus lábios úmidos como frutos mordidos!

Alegria Suprema
            Alegria, mesmo, é a do suicida que escolhe o dia mais azul – exatamente o dia mais azul! – e joga-se, triunfalmente, do arranha-céu mais alto da cidade...



Velório Sem Defunto

Bucólica
            Na solidão da noite
            uma vaca, uma abençoada
            vaca
            muge:
o seu mugido é um rio de veludo morno,
voz de mãe e de amante:
quente e cariciosa...
- a mesma voz que tu, antes de me abandonares,
Tinhas sempre comigo!

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