Um Vôo Libertador

Em uma das longas viagens da Gralha, quando ela pousara para descansar num pinheiro das regiões frias e enevadas do norte, percebeu em arbustos próximos um espreitador muito furtivo a observá-la.

Curiosa, porém perspicaz, esperou o incógnito se aproximar e quando percebeu que este já fincava suas garras na árvore preparando-se para uma subida, ela grasnou:
- Que queres comigo, velho Lince?

- Apenas queria admirá-la mais de perto... – ronronou o outro em grunhidos baixos.

O hábil Lince terminou sua escalada e aproximou-se furtivo de sua nova companhia. A Gralha saltou agitada distanciando-se um pouco e batendo as asas, tentando assim manter afastado aquele que a fazia sentir-se ameaçada.

O felino afastou-se demonstrando respeito pela ave necrófaga. Tentou explicar-lhe que não se dava mais à caça de criaturas aladas. Estava velho demais e pequenos herbívoros terrestres eram mais fáceis de serem apanhados. Isso deixou a Gralha curiosa:
- Insisto em perguntar: Que queres de mim então?

- Conversar. Conhecer-te. Saber de suas viagens.

- Minhas viagens? – o indagou aproximando-se, levada pela curiosidade.

- Sim. Admiro-a muito. Sua plumagem fúnebre, seus olhos escuros que muito já viram e, principalmente, suas asas. Pode voar e ir a diversos lugares em grande velocidade, conhecer coisas inimagináveis para minha mente felídea. Invejo sua liberdade incondicional.

Abismada com as confidências daquele predador, a ave cor de ébano pensou: “Como pode um inimigo em potencial de minha espécie admirar-me tanto? Invejar-me?”. Sentiu seu ego aumentar. Sentiu-se importante perante o quadrúpede de presas afiadas. Gabou-se pelo fato de poder voar, dádiva não concedida a muitas criaturas, e disse que o melhor desse dom era poder plenamente sentir as carícias do onipresente vento.

- É um fato. Sempre desejei sentir o vento percorrer-me como num vôo de aves. – o Lince tornou a falar, pensativo, olhando o nada, vagueando mentalmente em lembranças de inexistência saudosista – Sempre que você sobrevoava a floresta eu a observava. Raríssimo uma ave de sua espécie passar por estas regiões. Encantei-me com sua beleza desde o primeiro vôo seu que presenciei.

A Gralha deslumbrou-se com o depoimento daquele amistoso ser, principalmente por descobrir nele um admirador secreto. Por suas longas viagens e nomadismo constante, nunca tivera um amigo. Menos ainda um admirador.

- Devo confessar-lhe uma coisa. Sempre que pousei para descansar nos pinheiros desta floresta notei você a me observar e ficava curiosa com sua curiosidade. Fico feliz em finalmente conhecê-lo e descobrir que não me vigiava com intenções predatórias.

- Fico honrado em fazê-la feliz com minha humilde presença. – ronronou o Lince com um leve abanar de rabo.

- Por que humilde? É tão belo e nobre, duvido que haja outro de sua espécie como você! Possui pelo sedoso e olhos azuis tão profundos quanto o mar.

- O mar... – ele devaneou por instantes em pensamentos, com uma expressão triste. – Esse é um de meus problemas. Nunca vi o mar. Estou preso a esta floresta e nada posso fazer.

- Por que nada?

- Sou um ser de climas frios, não me adaptaria a outras temperaturas, talvez nem a outros locais. Se ao menos pudesse voar, retornaria rapidamente a meu lar quando assim necessitasse.

Ambos calaram-se.

A Gralha pensava em como ajudar ou consolar seu novo amigo. O Lince deprimia-se com sonhos alados de liberdade impossível. Subitamente a Gralha teve o que chegou mais perto de uma solução:
- Por que não tenta correr o mais rápido que pode?

O Lince pareceu não compreender a sugestão de sua amiga lúgubre e pediu para que ela explicasse, ao qual ela respondeu:
- Com sua tamanha destreza poderia correr rápido o suficiente para sentir o vento, sentir-se livre.

Ele animou-se, a Gralha tinha razão. Pulou do pinheiro no mesmo instante e pôs-se a correr avidamente em meio à floresta. A Gralha alçou vôo seguindo o Lince, tentando acompanhá-lo em sua empolgação.

As patas do Lince mal começavam a se aprofundar na neve e, em saltos hábeis, removiam-se com reflexos relampejantes para o início de novos saltos. Com sua mobilidade ferina usava dos saltos para desviar-se de pedras, galhos e demais obstáculos em seu caminho.

As asas vigorosas da Gralha cortavam o ar com sutileza perceptível, a graça de seu vôo causava leves pontadas de inveja no próprio vento. Sua manobrabilidade aérea cativava tanto olhares terrestres quanto de outras aves. Com rasantes ela descia seu vôo para aproximar-se de seu companheiro e não perdê-lo de vista.

Em certo ponto os obstáculos começaram a esvair-se, até sumirem por completo. O Lince sentiu mais intensamente seus princípios de liberdade e aumentou a velocidade de sua corrida, também fechando os olhos para aproveitar melhor o momento. Correu tão rápido que nem a Gralha pode acompanhá-lo. Sentiu o vento deslizando por seus pelos e ficou extremamente feliz. Pareceu escutar algo que a Gralha tentou gritar-lhe, mas não se importou. Não podia parar de correr logo agora, por nada.

Deu um salto longo e sentiu como se estivesse voando, tanto que o salto não parecia terminar. Não terminou. Talvez estivesse mesmo voando, talvez ainda estivesse correndo e apenas sentia-se como num vôo. Não sabia. Apenas sentia uma felicidade suprema, se sentia livre, se sentia um só com o vento.

Abriu os olhos e notou que não estava correndo, nem voando. Estava caindo. Percebeu isso um instante antes de seu corpo ir de encontro ao chão num baque inaudível que silenciou a floresta. Por ter fechado os olhos enquanto corria não havia reparado o penhasco a sua frente. Morreu feliz.

A Gralha pousou num pinheiro próximo ao corpo de seu recém finado amigo. Ela havia dado a idéia daquela corrida. Fechou os olhos e deixou correr uma lágrima.

- Está triste por ter perdido seu primeiro e único amigo? – perguntou uma voz suave.

Era o vento, que sempre a acompanhara em suas viagens e conhecia sua solidão, mas apenas nesse momento sentiu pena dela e pode parar de soprar para lhe sussurrar algumas palavras.

- Não. Estou feliz, pois ele encontrou a verdadeira felicidade que tanto buscava. Eu o libertei.

Comentários

  1. Conto triste, mas lindo. Morrer feliz é uma boa pedida. Fez-me lembrar de uma frase de M. de A, em "Dom Casmurro": Ele diz: "morre-se bem, às seis da tarde...".

    Mudando de assunto, não fiquei brava não, que idéia! Apenas eu quis deixar claro que não elogiei as flores do mal, quem elogiou foi Baudelaire...Só isso!

    O problema da comunicação escrita é que ao empregá-la não podemos usar as expressões faciais, o sorriso, a entonação da voz, até mesmo a postura corporal. Daí quando escrevemos fica pão pão queijo queijo, o nosso interlocutor não consegue perceber que estamos calmos e bem intencionados.A pessoa se prende apenas à letra.
    E eu lá ia ficar brava apenas pq vc falou algo sobre flores da mentira, ou que comeu muito bombom na páscoa? Nada disso.
    Agora mesmo ainda estou roendo meu ovo da marca Cacau Show - uma loucura- que recebi de presente.Nem foi um ovo gigante, pois na minha idade tudo tem que ser com parcimônia, nada de farra ou de overdose de cacau, mas estou feliz pq não tenho restrições médicas ao uso de açuçar. É isso aí, garotinho!
    Abração procê!

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